História do véu

Flavio Sullas-4Hijab, véu, quer dizer, em árabe, o que separa duas coisas. Então, véu significa, dependendo se é usado ou retirado, o conhecimento oculto ou revelado. Assim, na tradição cristã monástica, tomar o véu significa separar-se do mundo, mas também separar o mundo da intimidade na qual entramos numa vida com Deus. O Corão fala do véu que separa os condenados dos eleitos (7,44). Deve-se falar às mulheres por trás de um véu. Os incrédulos dizem ao Profeta: Há entre nós e tu um véu (41,4). Deus só fala ao homem através de revelação ou através de um véu (42), como foi o caso de Móises.

No Templo de Jerusalem, um véu separava o Santo do Santo dos Santos, e um outro vestíbulo do Santo. Foi dito (Mateus 27:51) que, no momento da morte de Cristo, o véu rasgou-se de alto a baixo. Esse rasgo mostra a brutalidade da Revelação operada pelo desvendamento em relação à Lei antiga: Não há encoberto que não venha a ser descoberto (Mateus 50:21). A retirada do véu, ou dos véus sucessivos, da deusa egípcia Ísis representa manifestamente a revelação da luz. Conseguir levantar o véu, diz Novalis, nos seus Lehrlinge zu Sais, é tornar-se imortal; e ainda: Um homem conseguiu levantar o véu da deusa de Sais. Mas o que viu? Viu o milagre dos milagres – a si mesmo.

Al Hallaj diz: O véu? É uma cortina interposta entre o que procura e o seu objeto, entre o noviço e o seu desejo, entre o atirador e o seu alvo. Devemos esperar que os véus só existam para as criaturas, não para o Criador. Não é Deus que usa um véu, mas as criaturas[1].

No sufismo, diz-se que uma pessoa está velada (mahjub) quando a sua consciência é obcecada pela paixão, seja sensual ou mental, de tal modo que não percebe a Luz divina em seu coração[2].

Para os místicos, hijab, que designa tudo o que vela o alvo, significa a impressão produzida pelo coração Flavio Sullas-3pelas aparências que constituem o mundo visível e que os impedem de aceitar a revelação das verdades. O nafs (alma carnal) é o centro do velamento… As substâncias, os acidentes, os elementos, os corpos, as formas, as propriedades, todos são véus que ocultam os mistérios divinos. A verdade espiritual está selada para todos os homens, com exceção dos santos.

Um dos tratados mais antigos do sufismo, o de Hudjwiri, chama-se Desvelamento (kashf). Inúmeros tratados posteriores trazem esse título.

Ibn ul Faridh fala dos véus da mortalha dos sentidos[3]. a própria existência é considerada um véu para os sufistas.

No budismo, este mesmo véu que dissimula a Realidade pura é Maya; mas Maya, como Xácti, vela e revela ao mesmo tempo, pois se não velasse a realidade última – que é a identidade do ego e do self, do sich selbst e da Deusa – a manifestaçãoo objetiva não pdoeria ser percebida. O símbolo aqui se contradiz, pois o véu torna-se não o que oculta, mas, ao contrário, o que permite ver, filtrando uma luz ofuscante, a luz da Verdade. É neste sentido que se diz, em regiões islâmicas, que a Face de Deus é velada por setenta mil cortina de luz e de trevas, sem o que tudo o que o seu olhar atingisse seria consumido. Pela mesma razão Moisés teve de cobrir o seu rosto para falar com o povo hebreu. O Islã também dirá que Deus revestiu as criaturas com o véu de seu nome pois se lhes mostrasse as ciências de seu poder, desmaiariam, e se lhes revelasse a Realidade morreriam[4]: o véu do nome preserva a criatura de uma visão direta que a faria desmaiar. Pois também a luz solar possui uma dupla acepção simbólica: pode ser aquilo que cega, com seu brilho por demais intenso, o que faz com que os tais digam que o véu do dia esconde a luz dos astros, que se desvelam ao cair da noite.

O poder secular por vezes apropria-se deste símbolo para sacraliza-lo. É o que se dava com o Imperador da China, sempre podendo assim ver sem ser visto; e com o Califa, a partir do período omíada: seu camareiro, encarregado de transmitir as suas palavras durante as audiências, chamava-se “véu” ou “cortina” (Hajib), pois era ao mesmo tempo aquele que esconde e aquele que revela.

Em última instância, o véu pode então ser considerado mais um intérprete do que um obstáculo; ocultando apenas pela metade, convida ao conhecimento; todas as mulheres sedutoras sabem disso, desde que o mundo é mundo.

O símbolo também se define pelo esoterismo: aquilo que se revela velando-se, aquilo que se vela revelando-se.

[1] La Passion d’Al-Hallaj, 2 vols., Paris 1922.

[2] Introduction aux doctrines ésotériques de l’Islam, Lion, 1955.

[3] Nicholson R. –A., Studies in Islamic Mysticism, Cambridge, 1921.

[4] La Passion de l’Islam, Paris, 1922.

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